terça-feira, 31 de março de 2009

Trespasso-lhes o pisar

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"A intriga, a maldicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das sensações."


in "Livro do Desassossego" - Fernando Pessoa, o autor do autor Bernardo Soares.
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Segundo dizem, há palavras escritas para todos e palavras lidas para alguns.
Acaso do destino ou nem tanto, ou seja lá o que lhe chamem, a " horrorosa ignorância da inimportância do que são... " talhou-me o falange na forma da caneta, quando ao principiar do dia corri à frente do bico dos meus sapatos uns quase pisados passos de outros entediados, mais inebriados que eu, ou nem tanto, que não correm para chegar à paisagem imaginária. Piso-lhes os calos, os compassos e os trepasses de anúncio de loja abandonada no fatídico embalo dos sonhos que nunca passaram de objectos inanimados sem alma, engavetados num qualquer guarda-fatos sem maçanetas e de portas empenadas. Se fossem a conferir a fatalidade do acaso, conseguiriam somente espirrar de tanto pó que se guardou, na gaveta dos sonhos baços, distantes e desconexos.
Ao menos que se sonhe com a espátula da cozinheira, ou com o saco do carteiro, ou com o pão do padeiro!
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Existindo na incongruência do concreto, piso-lhes os passos e anuncio-lhes o trespasse.
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Sou igual a tantos outros, sonho com os reflexos da impossibilidade de se suceder, mas ao menos ainda tenho a espátula da cozinheira, o saco do carteiro e o pão do padeiro no silêncio de acontecer os monólogos perante as minhas multidões de gentes - os cegos, surdos, mudos e ocos, os bonecos de pau...

7 comentários:

Pearl disse...

Entre tudo e todos ainda tens o que realmente interessa, o que importa!!

Perserva-o bem dentro de ti pois sei que dentro da tua gaveta de sonhos existem realidades!

beijos e abraço!

Gothicum disse...

"Há sonhos que devem ser ressonhados, projectos que não podem ser esquecidos."
(Hilda Hilst)

Olá Freyja como estás? Gostei dessa imagem dos carteiros e padeiras...muito boa. Quanto ao sapato eu não posso pisar, pois como uso normalmente "sapatos de festa pela canela com ferrito à frente" era complicado utilizar a leveza deles ...No entanto, sempre tenho a hipótese de as descalçar e atira-las à cabeça da pessoa com amor. Gosto especialmente da frase que utilizas no início, sabes neste momento, estou a ser um pouco alvo de prosápias semi-escondidas, pois nem coragem têm de dar a cara, será pelo medo das minhas botas? Mas elas dão tanto amor que até estão tristes! Bem voltando à tua escrita, sempre cheia de imagens fantásticas do ser humano que habita este canto do Universo. Retiro a da espátula...ui se eu pudesse perder tempo com uma "boa cozinheira" e brincar com a espátula...fazia um jantar daqueles...eram sonhos brancos de farinha. É que eu adoro comer sem comer quase nada, coisas da amiga que tenho no estômago e que não quer sair, até as bactérias gostam de mim..adiante!

Bem beijos encartados docemente enfarinhados.
PS. Nada de me calcares...tenho artroses heeheh

Freyja disse...

Querida Pearl,


Preservo pois, preservo e uso e abuso e reutilizo e reciclo alguns!


Um beijo grande,

Freyja disse...

Caro Gothicum,

Estou muitíssimo bem, se bem que aguardo o tempo em que estarei ainda melhor!

Em relação às tuas botas, permite-me a referência às antigas Doctor Martin com costura amarela, que usava nos tempos da outra senhora, referenciando a cultura punk urbano que eu tanto gosto. Infelizmente nos dias de hoje já não as posso usar já que as minhas obrigações profissionais me impedem protocolarmente de enverdar os meus trajes preferidos...havia de ser curioso porém, ir a determinadas reuniões com as antiquíssimas e desfeitas, botas, as minhas igualmente antigas calças de ganga já em estado avançado de decomposição e uma camisolita a dizer: "Free Tibet"...garantidamente era impedida de entrar no escritório em tais trajes! hehehehehe

Quando normalmente me sucede o que dizes que a ti te está a acontecer, tenho uma postura quase instintiva de "toureira". È nessas alturas que as botas, as calças e a camisola, melhor fazem justiça à minha postura, calculadamente e minuciosamente composta, perante a falta de "olhos nos olhos". Sobe-me pela espinha um arrepio e o mais que sei fazer nessas alturas é um belíssimo "OLÈ!"... provavelmente um bocadinho de diplomacia e cordealidade surtissem efeitos mais positivos, mas enfim, nem todos somos igualmente perfeitos! hihihi
Ah! E a frase não é minha, é do excelso Fernando Pessoa, pelo punho do brilhante Bernardo Soares.

Caríssimo, usa e abusa da espátula, usa o carteiro para lhe enviares o "pão" nosso de cada dia, que certamente serás recebido com sonhos brancos.

Não calco ninguém, na realidade efectiva das coisas, mas ás vezes saêm-me assim uns pontapés nos calcanhares da personagem da frente... enfim, retoques de realidades!

Um beijo Punk,
;)

Gothicum disse...

Olá Freyja...Imagina um coordenador hospitalar e docente andar assim...com algum requinte, obviamente, mas com aquelas cores que deves imaginar...Agora imagina reuniões de gestão...ah! Claro e no gabinete sempre coisas calmas a passar no Pc como Turmion ou outras bandas de Igreja heheeh...vá lá imagina! Beijos.

Freyja disse...

Caro Gothicum,


Calculo sim! Até porque no meu escritório só se ouvem coisas dessas, muito calmas e tranquilas, ausentes de guitarras eléctricas estridentes, baixos hiper graves e baterias muito, mas mesmo muito compassadas e suaves, sem os pratos, principalmente o "clash"!

Imagino tanto que quase te visualizo a fazer "olé!" áqueles mentecaptos todos que condenam e censuram só porque se é diferente!
È uma tristeza, eu sei... mas há que ostentar com orgulho o que se é nas devidas alturas, sem entrar em choques com direito a réplicas, claro!

O que se é, suplanta tudo o que nos rodeia!

Coragem caro Gothicum, coragem e muita força! No fim, vale sempre a pena! :)


Beijo revolto,

Freyja disse...

Querida Amiga,

O Fernando Pessoa foi, é e sempre será um génio! Na forma brilhante em como escreveu e pela assombrosa forma como vê a humanidade e inerente solidão de alma subjacente a quem se sente...diferente.

O Bicho Verme!
Tal como o nome o diz, esta espécime em franca expanção no planeta terra (quase 100%) é composta de carne, viscosidades e obviamente falta-lhe duas coisas muito importantes!
1 - Cérebro. São incapazes de pensar, vivem no automatismo confortável das regras ensinadas pelos Bicho Verme papá e mamã e sociedade em geral. O que não é desculpa, porque se pensassem, perceberiam que há tão mais que a parede de cimento e o tecto azul de céu que vêm à frente dos olhos. São também incapazes de raciocínar o Bicho Verme do lado, porem-se na pele deles é pouco confortável porque aos olhos deles, são coisas, e não pessoas. Já para não falar das PESSOAS que habitam este planeta... Aí sim, é totalmente impossível porem-se na pele de PESSOAS, e pior, quando as pessoas lhe propôem uma viagem alternativa, "out of the box", a primeira reacção do Bicho Verme é regugitar toda uma panóplia de teorias ensinadas desde criança e, como se não bastasse, ainda ofereçem pedras à cabeça das PESSOAS.

Tudo isto vai de encontro à segunda lacuna do Bicho Verme. Falta-lhes ALMA! Incapazes de perceber, ou meramente ter uma noção da pequenez que somos todos, pessoas e bicho verme, acham-se extremamente evolúidos, até porque muitos deles vão à missa e procuram a Salvação no Senhor! E se pecam, rezam uns Avé Marias e o assunto fica resolvido. È tipo como pagar a multa de mau estacionamento. Depois temos a outra espécime de "ianlmados", aqueles que dizem que não são religiosos, não acreditam em "Deus". Esses são do pior que há, pelos motivos evidentes!

Principais características do Bicho Verme: Preguiça Mental, Preguiça de Alma, Egoísmo Puro.


Querida Amiga, é muitíssimo bom falar com uma PESSOA como tu! Obrigada por tudo!

Um beijooooooooo daqueles, muito grande!