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"A intriga, a maldicência, a prosápia falada do que se não ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciência inconsciente da própria alma, a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de macaco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são... Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso e reles, feito no involuntário dos sonhos, das côdeas húmidas dos desejos, dos restos trincados das sensações."
in "Livro do Desassossego" - Fernando Pessoa, o autor do autor Bernardo Soares.
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Segundo dizem, há palavras escritas para todos e palavras lidas para alguns.
Acaso do destino ou nem tanto, ou seja lá o que lhe chamem, a " horrorosa ignorância da inimportância do que são... " talhou-me o falange na forma da caneta, quando ao principiar do dia corri à frente do bico dos meus sapatos uns quase pisados passos de outros entediados, mais inebriados que eu, ou nem tanto, que não correm para chegar à paisagem imaginária. Piso-lhes os calos, os compassos e os trepasses de anúncio de loja abandonada no fatídico embalo dos sonhos que nunca passaram de objectos inanimados sem alma, engavetados num qualquer guarda-fatos sem maçanetas e de portas empenadas. Se fossem a conferir a fatalidade do acaso, conseguiriam somente espirrar de tanto pó que se guardou, na gaveta dos sonhos baços, distantes e desconexos.
Ao menos que se sonhe com a espátula da cozinheira, ou com o saco do carteiro, ou com o pão do padeiro!
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Existindo na incongruência do concreto, piso-lhes os passos e anuncio-lhes o trespasse.
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Sou igual a tantos outros, sonho com os reflexos da impossibilidade de se suceder, mas ao menos ainda tenho a espátula da cozinheira, o saco do carteiro e o pão do padeiro no silêncio de acontecer os monólogos perante as minhas multidões de gentes - os cegos, surdos, mudos e ocos, os bonecos de pau...